sábado, 5 de março de 2016

Cacos da Memória



Toninho tinha apenas seis meses quando seus pais, imigrantes portugueses no Rio de Janeiro, resolveram voltar à terra natal. Sua infância, portanto, passou-a numa aldeia portuguesa – Minas do Palhal – na qual a família viveu por onze anos antes de retornar definitivamente ao Brasil em 1957.
As lembranças desse tempo é que compõem esses deliciosos Cacos da memória que, como o nome sugere, reconstituem fragmentos de episódios vividos, recuperados ao capricho da memória e dependentes, muitas vezes, da “cola da imaginação” para restaurá-los ou “preencher lacunas”, ainda que a essência dos fatos permaneça inalterada.

O processo de resgate de sua infância é deflagrado [...] com a visão de uma menina com seu guarda-chuva e seus sapatos de verniz (“estalando de novos”) e seu ar de quem tem perfeita ciência de sua elegância. Esses sapatos levam o João Antônio ao Toninho e ao seu desejo de possuir sapatos de homem, não mais sandálias de menino.

Comprados para serem usados em sua 1ª comunhão, os “sapatos de verniz, reluzentes”, conferiram ao menino a importância que, anos mais tarde, ele irá identificar na menina do guarda-chuva: “Tive a impressão que todos admiravam os meus sapatos de verniz!”

O que Toninho não sabia “é que sapatos novos costumam magoar os pés” e o caminho de ida e de volta à missa foram o bastante para que ele voltasse mancando... Pronto: os cacos começam a se juntar! O leitor é levado, assim, a acompanhar artes e invenções do Toninho numa linguagem bem humorada em que não são raros trechos poéticos e belas metáforas, bem como o uso de expressões próprias do português de Portugal, devidamente “traduzidas” para o “brasileiro” ao fim de cada fragmento narrado.

Personagens, animais e festas da aldeia, a dor causada pela palmatória, a fartura – que “era a ausência da falta” – as vindimas, as “histórias ao pé do lume”, muitas delas envolvendo bruxas e lobisomens... as experiências de Toninho tornam-se as experiências do leitor, tal a leveza de seu texto, sua naturalidade e o verdadeiro encanto que despertam suas memórias.

Pelo que acima vai dito, fica evidente o quanto a obra me agradou e o quanto desejo sabe-la lida e amada por mais pessoas, especialmente nas escolas que hoje reúnem meninos tão cheios de brinquedos e tão vazios deles, tão necessitados, sem saberem, de – à falta de experiências ricas como as de Toninho – ao menos viverem, pela literatura, o que a vida já não lhes oferece viver.

Jussara Neves

http://www.jussaraneves.com.br/2013/05/cacos-da-memoria-de-joao-antonio.html

Filho de imigrantes, nasci no Rio de Janeiro em 12-09-46. Passei a infância numa aldeia portuguesa - Minas do Palhal - onde a família tentou radicar-se. Retornei ao Brasil em 1957. Sobre esse período escrevi um livro (Cacos da Memória, Edição do Autor, 2008), minha primeira experiência literária. Em 1965 ingressei na Aeronáutica, onde exerci a função de desenhista, dando baixa em 1995 como 1º tenente. Licenciado em Pedagogia e Educação artística, nunca exerci atividades pertinentes, mas gosto muito de artes plásticas, arquitetura, artesanato, cinema e leitura. Minha principal ocupação atual é esperar o dia do pagamento. Para que o tempo não me incomode demasiado, escrevo alguma coisa; não sei nem gosto de jogar cartas na praça... Sou casado, tenho dois filhos e fui adotado como avô. Não tenho guarda-chuva nem celular. Guarda-chuva, perdi todos que comprei ao longo da vida; desisti de perder mais um. De celular não preciso.

Joao Antonio Ventura

https://www.blogger.com/profile/00321521272177246479
http://votonico.blogspot.pt/

Jussara, acabo de chegar do aniversário da Yasmin Júlia (9 anos),outra menina que me inspira e que me adotou como avô, e ainda estou sob o impacto do que li no seu texto, portanto não sei bem o que dizer-lhe em agradecimento, só isto: amei tudo que disse!

Foi muito mais do que poderia esperar. Contudo, em se tratando de você, com o preparo que tem e completa ausência de outros interesses, nem a mínima obrigação de agradar-me - não duvido, acredito em tudo que disse. Ainda vamos falar mais de "Cacos", mas por ora quero dizer-lhe que o primeiro impacto foi com a primeira ilustração com os moinhos da Freirôa (que não cheguei a conhecer), onde reconheci de imediato o rio Caima, sem ter lido ainda a legenda. Hoje bastante desfigurado, aquele rio da ilustração é o Caima da minha infância, aquele que está na minha memória - é o "rio que passa pela minha aldeia". Uma das coisas que gosto muito no seu blog é o cuidado primoroso com que trata as ilustrações dos seus textos e todo visual do Minas de Mim. Agora vou dormir, Jussara, um grande abraço.

Joao Antonio Ventura, 26 de maio de 2013, 00:25

Ah, mais uma observação: aquela igrejinha da ilustração é a tal aonde fui assistir missa só para mostrar os meus lindos sapatos de verniz. Agora está restaurada e serve de morgue para o cemitério ao lado. Naquela ocasião havia sido destruída internamente por um incêndio, mas eu não registrei o fato na minha memória - só tinha olhos para os meus sapatos de verniz. Sobre isso escrevi um post no
Vô Tônico: "Um caco esquecido".

Joao Antonio Ventura, 26 de maio de 2013, 20:13

Foi através da minha amiga Dra. Nélia Oliveira e companheira de escrita a duas mãos no estudo monográfico "Ribeira de Fráguas - a sua história", 2010, que conheci o livro "Cacos da Memória", como profundo conhecedor da historiografia local, fiquei fascinado com a assertividade que o meu amigo João António Ventura colocou no seu livro, que, ele, teve a amabilidade de me enviar um exemplar para Portugal. Muitos dos locais mencionados na referida obra literária, ainda estão tal como ele os viu pela última vez. O rigor sociológico, diria, etnográfico, estampado neste livro é deveras incomum, particularmente para quem nunca mais visitou a aldeia na qual passou parte da sua mocidade e que, nota-se na fluidez da leitura, o marcou de forma indelével. Abraço, João.

Nuno Jesus, 28 de maio de 2013, 11:08

O LIVRO

Escrevi Cacos da memória entre 2006 e 2008, a partir de um evento ocorrido na cidade de Cunha – SP, que abre o livro sob o título de “A menina do guarda-chuva e os meus sapatos de verniz”, por ocasião de visita a um amigo de longa data, mas de há muito desgarrado da minha vida.

Ao escrevê-lo descobri que gostava de escrever; e o que era para ser meia dúzia de pequenas histórias virou um livro com mais de cem fragmentos da memória; e no conjunto uma crônica da minha família naquele período de dez anos.

E também descobri, ou redescobri, a aldeia da minha infância, longe no espaço e no tempo e quase apagada da minha memória. Visitei seus lugares (os meus lugares), seus habitantes e suas histórias. E aquela aldeia – Minas do Palhal – renasceu em mim.

Pude notar, enquanto escrevia e, principalmente, ao fim da tarefa, uma aproximação afetiva com o lugar e seus habitantes. A aldeia, que nos primeiros textos eu designei por “um lugar como aquele”, ao meio do livro designava por seu próprio nome e ao fim já era a “minha aldeia”.

Um amigo virtual português, Nuno Jesus, ao ler “Cacos da memória” derramou-se em elogios. Não compreendi bem o seu entusiasmo.

Nuno é diletante e pesquisador da etnografia daquela região em que se insere a minha aldeia; e autor, juntamente com a historiadora Nélia Oliveira, do livro “Ribeira de Fráguas – sua história”. Nuno enviou-me o ficheiro com a diagramação de outro livro seu, este em coautoria com Emília Campos e Vera Marques: “Telhadela – perspectiva histórica e etnográfica”. Ao ler o trabalho, lindamente ilustrado com fotografias de época, compreendi o entusiasmo de Nuno com o meu livro e também o significado da palavra etnografia, desconhecido para mim àquela altura. É que de certa maneira eu também fiz etnografia em Cacos da memória - sem o saber, porém, e portanto sem o compromisso e o rigor da ciência. Fiz etnografia contando histórias. Talvez por isso agradável de ler, segundo depoimentos vários.

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