quarta-feira, 25 de novembro de 2009

1994: Projecto da área-escola

Projecto da área-escola para conhecer os transportes públicos

Uma aventura na cidade

Para os alunos da Branca, em Albergaria-a-Velha, conhecer os transportes públicos significava ter que ir até Lisboa e angariar quase mil contos. Quando este projecto da área-escola não passava de teoria, poucos eram os que acreditavam nele. Mas o sonho passou a realidade.

«Atenção! Chegou a malta da Branca!» Dona Graça anunciava, com o auxílio da inseparável corneta, a chegada a Belém do grupo aventureiro. Eram 69 miúdos, acompanhados por 19 adultos, entre pais e professoras. Chegavam «da província», de perto de Albergaria-a-Velha. Uma senhora que esperava o eléctrico perguntava: «Vieram ver os Jerónimos?» Mas alguém respondia que não, que aquela era uma viagem para os miúdos utilizarem o máximo de transportes num só dia. A senhora comentou: «Ao menos, o Estado serve para pagar estas coisas!...» Mas enganava-se.

A aventura dos «amarelinhos» -- assim baptizados pela tripulação da TAP que os acompanhou no voo do Porto até Lisboa -- ficou em quase mil contos. Os bonés amarelos que todos usavam e que deram origem ao diminutivo foram oferecidos por uma empresa da região. Mas «o Estado», na figura do Ministério da Educação, manteve-se alheio.

A viagem, realizada na quinta-feira, era a concretização de um projecto da área-escola, uma das apostas da reforma do sistema educativo que carece de meios financeiros para coisas destas. Por isso, a solução foi pedir, e conseguir, apoios junto da câmara local e das empresas da zona.

O resto ficou a cargo da imaginação: «Montámos uma barraca de comes-e-bebes na feira anual dos 22, fizemos uma quermesse e organizámos um cortejo etnográfico seguido de leilão.» E a freguesia aderiu em peso.

A ideia de envolver neste projecto os alunos de duas escolas do 1º ciclo -- de Lajinhas e de Nobrijo -- surgiu numa reunião do Conselho Escolar. As professoras pensaram que o conhecimento dos transportes públicos seria um bom tema para motivar aquelas crianças, que raramente saem do seu meio. A proposta foi levada aos alunos, que aceitaram à primeira. Mais tarde, as professoras pensaram que um trabalho deste tipo só ficaria completo se os alunos pudessem utilizar cada meio de transporte.

Os preparativos para a aventura começaram nas aulas de Trabalhos Manuais. Além de desenhos e de colagens, os alunos fizeram reproduções de meios de transportes em cortiça. Ao mesmo tempo, iam preparando um estudo sobre a evolução dos transportes ao longo dos tempos. Depois, começaram as visitas de estudo.

Primeiro, foram visitar o Museu Ferroviário de Macinhata do Vouga e, mais tarde, foram até Aveiro de automotora. Há cerca de dois meses, participaram num programa patrocionado pelo Ministério da Educação sobre a comemoração dos Descobrimentos e foram até Lisboa para andar de barco. Por isso, desta vez, o barco ficou fora do programa.

Quando as professoras lançaram a ideia da viagem a Lisboa, poucos foram os que acreditaram nela: os custos eram muitos e as crianças muito pequenas. Ultrapassados os problemas, as professoras só voltaram a ter dúvidas sobre a concretização da aventura no dia da viagem: o motorista do autocarro que os levou da Branca ao Porto decidiu que havia de ser feita pela estrada nacional. Os nervos ficaram à flor da pele e alguns dos miúdos «enjoaram, mas não vomitaram».

Já com o avião à vista, as professoras suspiravam de alívio e comentavam o susto do autocarro: «Estava a ver que não chegávamos a tempo...» Chegaram em cima da hora e os «amarelinhos» precipitaram-se para o «check-in», dois a dois, de mãos dadas.

Avião é «alto risco»

Os pais dos miúdos que ali estavam tinham confiado na boa vigilânica das professoras. Só meia dúzia de alunos das duas escolas envolvidas ficaram em casa. Os pais «tiveram receio porque consideram o avião um transporte de alto risco», explicava uma professora.

Antes de entrar para o avião, Telmo era dos poucos que não estava com medo. Em contrapartida, cada passo que Fábio dava era mais inseguro do que o anterior. Ao subir as escadas de acesso ao avião reconhecia que estava nervoso e não conseguia dizer mais nada sobre o que lhe ia na alma. Já dentro do aparelho, o espanto foi geral. Joana não imaginava que fosse «tão grande e tão confortável».

No avião, quase todos os alunos da Branca ganharam bons companheiros de viagem. Os passageiros do lado apertaram os cintos aos miúdos e foram explicando as regras de segurança. Ao primeiro movimento do avião, as crianças soltaram os primeiros risos nervosos. Uma das miúdas estranhava o facto de ele «estar a andar para trás».

Quando terminou a «marcha a atrás», Catarina, Patrícia e Ana Maria trocaram olhares de dúvida. Nenhuma conseguia imaginar o passo seguinte do piloto. A colega do banco de trás sugeria que dessem as mãos para ganhar coragem. Patrícia apertava a barriga com toda a força e Catarina procurava o bater do coração para sentir o ritmo acelerado. Finalmente, o avião levantou e os miúdos não resistiram. Os seus gritos agudos confundiam-se com os risos dos adultos, que assistiam, divertidos, às reacções dos mais pequenos.

A aterragem foi outra emoção. Os passageiros mais habituados a estas andanças bateram palmas e os miúdos estranharam. Uma senhora que vinha do Brasil depressa lhes explicou que as palmas eram para o piloto porque tinha aterrado bem, «e nem sempre é assim!». De seguida, um membro da tripulação anunciou: «Os amarelinhos já podem sair.»

A corneta de D. Graça

Chegados a Lisboa, o grupo foi à procura do autocarro que havia de os levar ao Campo Grande. Enquanto a directora da escola contava ao inspector da Carris que o Metropolitano tinha oferecido os bilhetes, as crianças cantavam. Assim que saíram, montaram o primeiro acampamento para comer, e alguém comentava: «Estão sempre cheios de fome.» Pela primeira vez, ouviu-se a corneta de D. Graça, uma das mães que fazia parte do grupo.

Depois, foi a vez do metro. Cada um dos miúdos picou o seu bilhete para que, da próxima vez, saibam andar de metro sem a ajuda dos adultos. Uma vez na carruagem, voltaram às cantorias. À saída, uma das miúdas dizia para a colega: «Anda, lesma!» Era o medo de ficar perdida na confusão.

Do Rossio até à Praça do Comércio foram a pé. Enquanto os rapazes se divertiam com as montras de «lingerie», num grupinho de miúdas comentava-se a viagem. «Como já andámos de barco, só falta aquele que tem uma coisa em cima a rodar, como é que se chama?», perguntava uma delas. E a amiga respondia: «É o helicóptero!»

Depois de novo piquenique, chegou a vez do eléctrico, amarelinho como os passageiros. Antes de começar o trajecto, um dos miúdos decidiu «picar» todos os bilhetes de metro que tinha à mão, alterando por completo a contagem dos passageiros. Quase ninguém se apercebeu e a malandrice passou.

Chegados a Belém, já era hora de almoçar. «A malta da Branca» escolheu uma sombra na relva para, desta vez, comer a sério. Mas a maioria dos miúdos seguiu para o Museu dos Coches com as mochilas pouco aliviadas, porque as mães exageraram na merenda.

Quando este projecto não passava da teoria, até o inspector das duas escolas se ria da ideia. A directora da Escola das Lajinhas, Virgínia Cruz, conta que «no princípio toda a gente dizia que era um sonho que nunca se concretizava». Mas o sucesso da iniciativa já leva as organizadoras a pensar em voos mais altos: «Para o ano vamos à Eurodisney!»

Hália Costa Santos / PUBLICO - 21/06/1994

Uma composição no comboio

O PÚBLICO, que acompanhou os alunos das escolas de Lajinhas e de Nobrijo nesta viagem, pediu-lhes um depoimento escrito sobre o que viram e sentiram. Nos bancos do Intercidades, entre Lisboa e Aveiro, seis alunos do 4º ano fizeram a composição que se segue.

«Hoje foi um dia importante e aventureiro. Saímos da escola às 6h35 numa camioneta de dois andares. Em seguida, fomos buscar os meninos de Nobrijo. (...) Quando partimos da escola de Nobrijo fomos apanhar a estrada nacional que dava acesso à Cidade Invicta.
Logo que chegámos ao Aeroporto Francisco Sá Carneiro, começámos a observar os aviões. Passados dez minutos, fomos para uma carrinha que nos levou directamente para o avião.
Dentro do avião, era um luxo! Imaginem que até tinha um colete salva-vidas e pessoas a servir coisas deliciosas como sumo de laranja e `croissant' com queijo, fiambre e manteiga.
Logo a seguir a ter levantado voo, o avião passou por cima das nuvens. Depois de subir as nuvens, lá estava o Sol a brilhar com intensidade. No princípio via-se muito nevoeiro, mas logo passou. No avião, de um lado via-se o verde da serra e do outro o azul do mar. Passados 35 minutos (...) apertámos os cintos para aterrar.

Saímos do avião, apanhámos uma camioneta e fomos para a estação do metro. Passámos cinco paragens até sairmos no Rossio.

Apanhámos o eléctrico e andámos três quartos de hora até chegar a Belém. Almoçámos no jardim de Belém e brincámos enquanto as professoras foram comprar os deliciosos pastéis de Belém. A seguir, fomos a pé ao Museu dos Coches, mas antes passámos por casa do dr. Mário Soares.

(...) vimos coches antigos, que eram de reis, rainhas e papas. [Num] compartimento havia coches de todo o tipo e forma. Passando para o compartimento de cima, vimos quadros com pessoas importantes... Depois fomos ver uns quadros com a evolução das pessoas e dos eléctricos.

No jardim, [alguns] rapazes foram jogar à bola e enquanto eles jogavam futebol os outros foram comprar um gelado. Depois (...) fomos ter com uma camioneta de dois andares para com esse transporte seguirmos para a estação de Santa Apolónia.

Na Estação de Santa Apolónia fomos jantar e logo de seguida viemos para o Intercidades. (...) Gostámos muito deste passeio e ficámos emocionados. Foi a melhor surpresa destas crianças que participaram nesta viagem.

P.S.: Neste passeio sentimos uma grande emoção, folia e coisas que nunca sentimos na vida...»

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